JORGE HAGE
Se aprovada essa emenda, o nosso Judiciário chegará ao padrão em que as garantias processuais do réu não são biombos para a impunidade
Todos os sistemas judiciários adotam meios para a correção de erros de suas decisões.
Da busca do equilíbrio entre os valores da celeridade e da solução mais perfeita é que resultarão, em cada sistema, o número e as espécies de tais instrumentos. A doutrina costuma agrupá-los em duas categorias: os recursos e as ações autônomas de impugnação. Há países que privilegiam aqueles; outros preferem estas. O Brasil adota um número imenso de recursos e poucas ações de impugnação.
Qual a diferença essencial? É que os recursos atacam a decisão antes do trânsito em julgado, ou seja, prolongam a duração do processo; já as ações servem para rescindi-la após o trânsito. Mas ambos são instrumentos de correção das decisões e, assim, servem aos mesmos propósitos de garantir a não perpetuação de injustiça ou de nulidade.
Qual deveria ser, então, o critério para optar por uma ou outra dessas espécies? Dentre outros, a maior ou menor probabilidade de ocorrência de equívocos naquela altura do processo. Se elevada, vale a pena sacrificar a rapidez do desfecho, vale dizer, deve-se optar pelos recursos -afasta-se aqui a distinção quanto ao chamado "efeito suspensivo", tendo em vista tendência do STF, que a esvaziou.
Ao contrário, se baixa a probabilidade de erro e consequente reforma, deve-se optar pelas ações autônomas, que não impedem o imediato cumprimento da decisão.
No caso do Brasil, campeão mundial em recursos, é óbvio que, após uma decisão de segunda instância (tribunais), já tendo sido possível o uso de inúmeros apelos, muito mais razoável seria cumprir-se a decisão e depois, se fosse o caso, usar uma ação autônoma para impugnar essa decisão final.
Isso vem a propósito da PEC baseada em oportuna sugestão da autoridade mais legitimada a lançá-la -o presidente do STF, ministro Cezar Peluso. A proposta é tão simples na aparência quanto profunda em seu alcance. Ela substitui os recursos especial e extraordinário, que vêm fazendo o STJ e o STF serem usados como 3ª e 4ª instâncias (não previstas aqui nem alhures), por ações rescisórias.
Essa mudança significa que os processos, hoje intermináveis quando se trata de condenar réus poderosos ou endinheirados, se concluiriam nos Tribunais de Justiça ou nos Tribunais Regionais Federais (2ª instância), como ocorre na maioria dos países civilizados.
Reservar-se-ia a esses réus, ainda, uma possibilidade de corrigir eventual injustiça ou erro processual por meio da ação rescisória. Só que esta, como dito antes, é processo posterior, que em nada impede a execução da sentença anterior.
É tão evidente a vantagem dessa mudança que só mesmo o interesse de quem ganha muito com a atual enxurrada de recursos pode explicar a virulenta reação à PEC.
O índice de reforma das decisões criminais no STF é baixíssimo, o que mostra o acerto das decisões dos tribunais de 2º grau.
A reação, pois, nada tem a ver com real preocupação com as garantias do contraditório e do "duplo" (!) grau de jurisdição, já sobejamente atendidas quando tais processos chegam à decisão nesses tribunais. Não é por ofensa à ampla defesa que nosso país se expõe à crítica internacional, mas, sim, por dificilmente conseguir colocar na cadeia os corruptos e os criminosos da alta finança.
Se aprovada essa emenda, o Brasil aproximará seu sistema judiciário dos padrões de países em que as garantias processuais do réu não são biombos para a impunidade.
* Artigo publicado na Folha de São Paulo.
JORGE HAGE, mestre em direito público pela UnB (Universidade de Brasília) e em administração pública pela Universidade da Califórnia (EUA), juiz de direito aposentado, é ministro-chefe da Controladoria-Geral da União.
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