O Brasil terminou o ano de 2010 com mais de meio milhão de presos, sendo quase 45% deles em situação cautelar, ou seja, na espera por uma decisão definitiva. São pelo menos 220 mil pessoas, a maioria pobre, atrás das grades e sem a sentença final. O drama, provocado por um sistema sobrecarregado e lento, já é do conhecimento de grande parte dos brasileiros. O que muita gente ainda não sabe é que a Justiça também é injusta para os que nela trabalham.
Abarrotados de processos – média de 4.763 por ano, sendo o volume aceitável de mil processos por magistrado, no máximo –, os juízes estão adoecendo. Em decorrência do excesso de trabalho, da falta de estrutura adequada e de pessoal, apontam as principais associações da categoria. Os profissionais de toga têm apresentado mais sintomas de ansiedade, depressão, distúrbio de sono, doenças cardíacas e até câncer.
Na ponta do iceberg, está a preocupação com a segurança e com a vida – a própria e a de seus familiares. Somente em Minas Gerais, segundo o diretor da seccional do Norte do estado da Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis), Marcos Antônio Ferreira, são mais de 20 juízes ameaçados de morte. “Nós, que já enfrentamos a carga excessiva de trabalho, agora estamos apreensivos. Muitos tiveram que redobrar cuidados, mudar hábitos e deixar de fazer coisas simples, como caminhada na rua. Isso expõe nossa vulnerabilidade e aumenta o estresse”, afirma.
Colega de profissão de Marcos Ferreira, o juiz Isaías Caldeira Veloso, da 1ª Vara Criminal de Montes Claros, convive com a ameaça há tempos. No início de 2010, uma operação conjunta das polícias Civil e Militar conseguiu desarticular um plano para matá-lo. Quatro suspeitos foram presos. Recentemente, ele voltou a ser coagido. Uma de suas filhas passou a receber ligações anônimas com conteúdo ofensivo e ameaçador. “Amo o que faço, mas estou muito preocupado com nossa classe. O juiz trabalha, trabalha, trabalha. Enfrenta todo tipo de gente em processos onerosos para o estado. Só que, beneficiados pela lei, os condenados têm a pena reduzida e praticamente não ficam presos. O resultado é a sensação de impunidade e muita frustração”, desabafa.
Isaías Veloso confessa que ficou mais receoso após a morte da juíza Patrícia Acioli, assassinada com mais de dez tiros na porta de casa em Niterói, em agosto deste ano. Consternado, passou a ter dificuldade para dormir, ficou mais ansioso e ganhou peso. Mas, como a juíza Patrícia, diz não ter medo de morrer. “A responsabilidade do cargo é enorme. Temos que seguir em frente.”
O juiz Sérgio Abdalla Semião, de Belo Horizonte, não aguentou. Seu organismo perdeu a batalha para a rotina de trabalho que começava às sete da manhã e só terminava 12 horas depois. Preocupado com o acúmulo de tarefas e a responsabilidade do cargo, não comia direito nem praticava exercícios, era agitado e só dormia à base de Lexotan. Em 1997, aos 45 anos, teve que se submeter a quatro cirurgias de pontes de safena e de mamária. Três anos mais tarde, chegou a desmaiar no fórum em duas ocasiões. Em 2001, aos 49 anos, aposentou-se por invalidez. “Obviamente, há o componente genético. Mas os próprios médicos afirmam que a sobrecarga de trabalho, a urgência dos assuntos e o estresse foram decisivos para o meu quadro clínico. É inacreditável o que juiz passa no Brasil”, revela Semião, que dedica-se aos estudos e à produção de um livro.
O retrato de um Judiciário doente é escancarado na pesquisa Situação de Saúde e Condições do Exercício Profissional dos Magistrados Trabalhistas do Brasil, feita pela professora Ada Ávila Assunção, da Escola de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a pedido da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). De acordo com o estudo, que ouviu mais de 700 profissionais em todo o país, 41,5% dos juízes trabalhistas brasileiros declararam depressão diagnosticada por médicos. Quase 18% tomam medicamento para controlar a doença e aliviar seus sintomas.
Nos últimos 12 meses, 33,2% estiveram de licença médica e, nos últimos 30 dias, 26% deixaram de realizar tarefas habituais devido a algum problema de saúde. O levantamento aponta que aproximadamente 40% sentem-se tristes e mais de 15% têm chorado mais do que o de costume. O motivo da tristeza não é o salário. Com rendimentos superiores a R$ 20 mil mensais, a categoria culpa o trabalho excessivo: 85% dos entrevistados costumam trabalhar em casa, 45% se deitam depois da meia-noite e 18% acordam antes das cinco da manhã para dar conta dos afazeres. Férias, só no papel. Pelo menos 64% confessaram que não abandonam os processos no período que deveria ser de descanso.
“O resultado da pesquisa é gravíssimo, pois mostra que o problema dos juízes não é só físico, mas também psicológico. Com isso, o número de afastamentos tem aumentado, trazendo mais intranquilidade aos magistrados e morosidade para o sistema”, afirma o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Renato Sant´Anna, para quem, infelizmente, tais angústias e males são vivenciados por magistrados de todas as varas e instâncias pelo país afora.
Que o diga o presidente da Amagis, o juiz Bruno Terra Dias. “A incidência de doenças ligadas ao estresse tem apresentado curva ascendente entre nossos associados. Na última década, a composição de gastos do plano de saúde da Amagis com câncer, por exemplo, saiu de 1% para 8%, sendo que 3% já pode ser considerado um percentual absurdamente
alarmante”, alerta. Para Bruno Terra, também assusta o fato de que, nos últimos 15 anos, apesar de os magistrados ingressarem mais jovens na carreira, o adoecimento está cada vez mais presente e prematuro. “Doenças como hipertensão, estenose arterial, depressão e dores lombares acontecem com mais frequência, mesmo em indivíduos jovens”, lamenta.
O comprometimento da saúde da magistratura é causado, segundo o presidente da Amagis, por um conjunto de fatores. Em primeiro lugar, a sobrecarga, já que em Minas há apenas um juiz para cada 20 mil habitantes. Na capital, a proporção é ainda pior: um para 36 mil. “Para se ter uma ideia, na Argentina a média é de um magistrado para cada grupo de 10 mil pessoas.” Também falta pessoal, tanto juízes quanto funcionários, escrivães, oficiais e peritos. A modernização tecnológica não acontece no ritmo e proporção necessários. A capacitação da mão de obra só engatinha. Ainda é preciso, na sua avaliação, maior dotação orçamentária.
Diante da avalanche de problemas, muitos magistrados têm sucumbido às doenças do corpo e da mente. O secretário-geral da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), juiz Nelson Missias de Morais, conta que levantamento recente detectou um enorme índice de infartados na casa dos 50 anos. E diz que tornaram-se mais comuns os pedidos de exoneração entre juízes que ainda não chegaram nessa faixa etária.
“A população cresceu e ficou mais consciente de seus direitos. Vai à Justiça para resolver seus conflitos porque confia nela. Só que, do jeito que está, fica difícil atendê-la da maneira que merece”, queixa-se Missias, que dorme no máximo quatro horas por noite, não se alimenta de forma adequada e, como resultado, viu a balança avançar vários dígitos. “A obesidade também virou um problema comum entre os magistrados”, comenta.
Talvez ainda mais assombrosa seja a prevalência (32,2%) de juízes em risco de apresentar transtornos mentais, muito superior àquela encontrada em estudos realizados em outras populações, conforme desvendou a pesquisa da Anamatra/UFMG. Outro dado extremamente perigoso: uma parcela de juízes que respondeu às perguntas foi afirmativa quanto à questão sobre se já tinha pensado em acabar com a própria vida. Não ficou só na estatística. No dia 4 de agosto deste ano, uma juíza do trabalho de Recife atirou-se do 11º andar do prédio onde trabalhava. Meses antes, um magistrado do Rio de Janeiro havia dado fim à sua vida. O que a categoria espera é que, com informações tão alarmantes nas mãos, algo seja feito para afastar o demônio do meio-dia, que parece andar à espreita nas varas e nos tribunais.
Carga pesada
Justiça de 1ª instância
Distribuição média de processo por juiz (ao mês)
1994 - 62
2010 - 200
Número de sentenças por juiz (ao mês)
1994 - 47
2010 - 143
Juízes em atividade
1994 - 537
2010 - 927
Total de processos em andamento na Justiça comum estadual
1994 - 507,87 mil
2010 - 4,415 milhões
Média de processos por juiz (ano)
1994 - 946
2010 - 4.763
Desembargadores (TJMG)
2005 - 117
2010 - 121
Processos distribuídos por desembargador (ao mês)
2005 - 110
2010 - 198
Processos julgados por desembargador (ao mês)
2005 - 45
2010 - 171
Adoecimento do judiciário
- 84,4% costumam trabalhar em casa
- 70,4% trabalham nos finais de semana, mesmo estando cansados
- 69,5% se alimentam em horários irregulares por causa do trabalho
- 64,3% trabalham mesmo nas férias
- 53,8% dormem mal
- 50,9% frequentemente têm insônia
- 45% deitam depois da meia-noite
- 41,5% sofrem de depressão
- 37,8% estão tristes atualmente
- 33,2% estiveram de licença médica nos últimos 12 meses
- 32,2% estão em risco de apresentar transtornos mentais
- 17,5% usam medicamentos para depressão ou ansiedade
Faltam magistrados
- Em MG, há 1 juiz para cada 20 mil habitantes
- Em BH, há 1 juiz para cada 36 mil habitantes
- Na Argentina, a proporção é de 1 para 10 mil
Artigo publicado originariamente na revista Viver Brasil: www.revistaviverbrasil.com.br/82/materias/02/alerta/juizes-estao-doentes-e-com-medo/
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