Por Teresa Arruda Alvim Wambier
Criticas genéricas que se consubstanciam em meras afirmações, verbalizadas por meio de “frases de efeito”, geram dificuldades para aquele que pretende combatê-las: dizer que o novo Código de Processo Civil “transforma juízes em deuses e advogados em escravos” é uma frase de efeito, daquelas que seduzem os ouvintes. Aliás como reconhece o próprio autor do artigo que foi publicado em 10 de dezembro de 2011, na Conjur.
No entanto, incontornável desconfiança deve ser gerada pelo fato de que essas afirmações jamais vêm apoiadas pela citação de dispositivos do projeto para um novo Código de Processo Civil gerariam esse tal “poder” para os juízes. De onde os tais críticos tiraram isso?
Com certeza, não poderia ser a extinção do agravo retido o motivo de alguém entender que o juiz teria mais poderes, segundo a lei projetada. Na verdade a extinção do agravo retido não muda em nada a situação para a parte, no plano dos recursos. Se muda, um pouco, muda para melhor, pois a parte não tem que interpor um recurso no momento em que é proferido ato que quer impugnar, recurso esse que só é julgado depois de proferida a sentença, junto com o recurso que se interpôs da sentença. Pelo projeto, a parte interpõe depois um recurso que será julgado também depois. Porque exigir da parte que se movimente para interpor um recurso que só vai ser julgado no fim do processo, junto com a apelação?
Em outro espaço (em entrevista antes publicada na Revista Veja), sugere-se que o juiz terá mais poder segundo o projeto, por que a parte não poderá mais recorrer de decisões que indeferem pedido de produção de provas. Esse “equívoco” foi cometido por um dos mais ferrenhos críticos do Código novo, que chegou a sugerir que, segundo a lei vigente, caberia agravo de instrumento contra esse tipo de decisão !!!...e que o CPC novo mudaria esse quadro... que as partes teriam “cerceado seu direito de recorrer”. Sabe-se que, na verdade, hoje, já não cabe mais esse recurso desse tipo de decisão. Cabe, como regra, o agravo retido, que não é julgado imediatamente, mas sim no mesmo momento do julgamento da apelação. Exatamente e precisamente como está proposto no Projeto do NCPC, pois aquilo que hoje é julgado, por força do agravo retido, como preliminar do julgamento da apelação, aprovado o Projeto, será julgado no mesmo momento da apelação (como parte integrante das razões ou das contrarrazões da apelação), em nada obstruindo ou eliminando do direito da parte de recorrer. Em suma: nada mudou quando a este momento e nem quanto à plena recorribilidade.
Quando afirmamos que este novo Código, ao contrário do que afirmam muitos dos seus críticos impiedosos, sem citar nenhum dispositivo para exemplificar a afirmação abstrata que fazem, na verdade, mais limita do que alarga os poderes dos juízes, cito exemplos de dispositivos que evidenciam essa realidade.
Como tenho dito insistentemente, uma das tônicas deste Código projetado é justamente a de incentivar a criação, no âmbito dos tribunais superiores, de jurisprudência estável, que terá a função de orientar a conduta do jurisdicionado e correlatamente as decisões dos demais membros do Judiciário. Ora, evidentemente, essa tendência, manifestada em diversos dispositivos, tanto de cunho principiológico, quanto sob a forma de regra minuciosa, cerceia a liberdade do juiz, em prol de um interesse maior, fazendo com que se crie para a sociedade brasileira, uma pauta de conduta mais clara, prestigiando assim a segurança jurídica e o principio da previsibilidade. Outro exemplo que me parece expressivo é a nova versão do princípio do contraditório, que cria para o juiz o dever de provocar o contraditório, antes de decidir, mesmo quando se tratar de questões de ordem pública, sobre as quais pode decidir de ofício.
Dizer que o Código não deve ser aprovado porque novidades causam transtornos de adaptação, é observação provavelmente fruto da visão de mundo de quem a manifesta. Devesse ser assim, ainda estaríamos na Idade Média, ou quem sabe antes. Mudanças causam transtorno, mas são pressuposto do progresso. O Código de 1973, sem dúvida, merece toda espécie de elogios quanto ao seu apuro técnico, mas foi concebido num momento histórico em que não havia muitas das realidades com que hoje temos de nos defrontar, como, por exemplo, as ações de massa. Por outro lado a dispersão excessiva da jurisprudência também não era assunto que preocupava seriamente a comunidade. Isto ocorria, me parece, em parte porque havia uma atitude mais respeitosa com relação à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que aliás, não se alterava com a frequência com que se altera hoje. Basta que percebamos a importância que vem ganhando institutos como o da reclamação, para que se possa perceber como a situação se alterou.
Uma das criticas que se faz, ao CPC atual, é a de que ele se teria tornado uma colcha de retalhos, por ter sido reformado repetidas vezes, e ter, ipso facto, perdido sua forma sistemática. O processo pelo qual passou a elaboração do projeto foi extremamente democrático: foram ouvidas e acatadas inúmeras sugestões. Aliás, esse processo ainda está em andamento e sugestões ainda estão sendo ouvidas. Mas isso não significa dizer que devam ser todas acatadas, até porque, se um dos defeitos do CPC em vigor é a sua falta de coesão, fossem todas as sugestões realmente acatadas, ter-se-ia criado o caos. Mais uma vez, essa queixa só pode provir daquele que não teve a sua própria sugestão acatada. Democracia, para alguns, parece não ser o sistema em que a dialeticidade ocorre amplamente, senão um mecanismo de imposição de suas próprias idéias.
Por outro lado, cita-se como sintoma de que o juiz estaria pelo projeto munido de superpoderes, a permissão de que ele preste tutela de ofício. Claro que nenhum juiz deve prestar tutela, se a parte não a requerer: o que o projeto prevê, neste plano, é exatamente a mesma coisa que o CPC atual prevê, ou seja, o juiz pode de ofício, conceder medidas para, por exemplo, preservar o objeto material do litígio. É o caso de laranjas que estejam apodrecendo. O Código atual permite, assim como permite o projeto, que o juiz determine que as laranjas sejam vendidas e substituídas por pecúnia ou armazenadas num frigorifico. Mas, ao contrário, é legítimo afirmar-se que o juiz no Projeto de NCPC é “mais responsabilizado” do que no CPC/73, ou, por outras palavras, tem “menos poderes”. O mundo de hoje usa abundantemente conceitos vagos, que atribuem grande liberdade de deliberação aos juízes. O Projeto de NCPC dispõe o parágrafo único, do art. 477, o seguinte: “Parágrafo único. Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem conceitos juridicamente indeterminados, cláusulas gerais ou princípios jurídicos, o juiz deve expor, analiticamente, o sentido em que as normas foram compreendidas”. Ou seja, é mais rigoroso o dever de fundamentar. Ainda, o parágrafo único do art. 476, dispõe: “Parágrafo único. Não se considera fundamentada a decisão, sentença ou acórdão que: I – se limita a indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo; II – empregue conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; V – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.
Ou seja, a afirmação verdadeira, “documentada” em dois artigos fundamentais, é inversa à feita: o juiz tem menos poderes, na medida em que o seu dever de fundamentar/justificar/explicar-se é rígido.
Portanto, onde estão as tais “ofensas gravíssimas à liberdade”?
As críticas são tão vagas que se duvida que tenham sido fruto da leitura atenta ao projeto ou que o tenham compreendido como é esperável de quem critica. E às vezes, percebe-se que muitas das afirmações evidenciam a falta também a leitura atenta da própria lei em vigor.
Temos a certeza de que todos os membros da comissão de juristas, responsável pela elaboração da primeira versão do projeto, tanto quanto os membros da comissão que trabalhou no Senado, e também os integrantes da que agora está se ocupando do projeto na Câmara, (e só esse número de comissões já demonstra o quão democrático foi e está sendo o processo de elaboração da nova lei) terão o prazer e a satisfação de participar de um debate frutífero, franco e intelectualmente honesto a respeito dos defeitos do Código projetado, e isso só pode ocorrer se as criticas não se limitarem a afirmações bombásticas, genéricas e não exemplificadas. De resto esses debates já foram feitos, tanto no Senado, quanto estão sendo realizadas na Câmara de Deputados, numa notável prática de democracia direta, ou seja, dialogando com inumeráveis pessoas, representantes de todas as entidades que a essas reuniões compareçam, como, ainda, recebendo e considerando todas as mensagens, que chegaram e chegam aos milhares.
Teresa Arruda Alvim Wambier é advogada.
Revista Consultor Jurídico, 13 de dezembro de 2011
0 comentários:
Postar um comentário