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TJGO - Tribunal de Justiça do Estado de Goiás

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UMA HOMENAGEM A RIO VERDE

terça-feira, 7 de agosto de 2012

 

Nas transmissões ao vivo da TV ou repicadas em tempo real pela internet, nas páginas dos jornais ou nas revistas semanais, as atenções do País estiveram voltadas para ela: a corte. Desde o início do julgamento da Ação Penal 470, o famoso mensalão, na quinta-feira, os primeiros lances do Supremo Tribunal Federal (STF) eclipsaram até os debates dos candidatos a prefeito e só encontraram rival na audiência dos Jogos Olímpicos de Londres.

Desde a tensão do primeiro dia, quando o ministro revisor Ricardo Lewandowski, ao acolher pedido de desmembramento do processo feito pelo advogado Márcio Thomaz Bastos, foi rebatido com um “termo forte” pelo relator Joaquim Barbosa: “deslealdade”. Passando pelo momento em que o ministro José Antônio Dias Toffoli se apresentou para o jogo, ignorando pressões para que se declarasse impedido de julgar. E prosseguindo no lançamento da detalhada peça acusatória do procurador-geral Roberto Gurgel, sobre o que chamou de “mais atrevido e escandaloso caso de corrupção e desvio de dinheiro público realizado no Brasil”. Uma competição de retórica e argumentos em que, até agora, submergem em silêncio os réus e seus renomados advogados – exceção feita ao ex-ministro Thomaz Bastos.

“O Supremo jamais julgou um caso desses”, explica o jurista Oscar Vilhena Vieira, que entende como poucos o protagonismo atlético que o STF tem exercido na modalidade “instituições brasileiras”. Professor e coordenador do programa de mestrado da Direito GV, em São Paulo, ele é autor de um dos mais instigantes ensaios sobre a mais alta corte do País, intitulado Supremocracia.

Na entrevista a seguir, Vilhena Vieira mostra como, ao acumular funções de órgão de última instância e corte constitucional guardiã de uma Carta Magna ambiciosa como a de 1988, o STF ganhou enorme musculatura num contexto político de “amesquinhamento” do Poder Legislativo. E, para vencer seus desafios, alerta o professor, ele deve abrir mão de arbitrar questões eminentemente políticas e tomar suas decisões de maneira cada vez mais colegiada.

Por que o sr. diz que o Supremo jamais julgou um caso como este?

Porque, especialmente a partir de 1988, o STF agregou o que em outros países do mundo está distribuído em uma série de órgãos jurisdicionais. Desde sua criação, em 1891, ele vem exercendo função de órgão de última instância, que revê as decisões de todos os tribunais inferiores – um volume enorme. E começou, um pouco em 1937, um tanto mais na década de 1960 durante o regime militar, e de maneira intensiva a partir da Constituinte de 1988, a função de corte constitucional – que é a de julgar a constitucionalidade de um ato ou lei. Isso é o que dá ao Supremo o destaque que vemos quase todos os dias nos jornais e na TV: ao discutir se a lei que permite a pesquisa de células-tronco é válida ou não, se a que define cotas para as universidades é válida ou não, se a de desarmamento é válida ou não. Mas em relação a sua terceira atribuição, que a Constituição de 88 consolidou, que é o julgamento de autoridades, muito pouco se viu até agora. A parte civil, sim, mas na criminal nós vemos que há uma enorme fila de processos: hoje são mais de 250 deputados aguardando julgamento no STF. Nesse sentido, ele inaugura uma nova etapa, julgando um grande caso criminal envolvendo autoridades.

Embora o STF tenha estado diversas vezes nas manchetes, durante o julgamento do mensalão estará no centro do debate político nacional. Os holofotes afetam a corte?

Se fosse uma corte tradicional sueca ou austríaca, talvez sim. Mas não podemos atribuir ao Supremo brasileiro uma posição de neófito nesse jogo. Ao longo dos últimos anos ele tem assumido a competência – muito incomum para um tribunal – de tomar decisões finais sobre questões de alta relevância política, econômica, moral e religiosa. É um tribunal experimentado, com tensões internas, mas que têm sabido resolvê-las institucionalmente. Se a visibilidade o afeta? Tomemos como exemplo o julgamento do presidente Collor. Por mais que ele tenha sofrido processo de impeachment, tenha sido execrado publicamente e a imprensa tenha dito o que disse dele, o STF o absolveu. E tem feito isso com a maior tranquilidade. Há ministros que não têm a menor preocupação em serem voto vencido ou em tomar decisões que contrariem o senso comum. É evidente que o Supremo sabe que tem de prestar contas à sociedade, que ela o está fiscalizando e que isso impõe um ônus enorme. Mas eu não teria o medo de que, no atual julgamento, o Supremo fosse levado a uma posição que ele não quer ter. Até porque não há desestabilização institucional em jogo: não estamos julgando um presidente em exercício ou uma causa que afete interesses mais diretos das Forças Armadas, por exemplo.

Forças políticas que se digladiam no julgamento pediram o afastamento de ministros. Para uns, José Antônio Dias Toffoli deveria declarar-se impedido por ter sido advogado do PT. Outros alegam que Gilmar Mendes é que deveria se afastar, pelo conflito que teve com o ex-presidente Lula. Quem tem razão?

Esse é um problema pelo qual passam todos os juízes do mundo. Não precisa ser da Suprema Corte: você imagina lá em Paraibuna (interior paulista), de onde eu venho, o juiz certamente estudou com um no primário, namorou outra, foi chefe do terceiro, trabalhou como estagiário no escritório do quarto. Isso é interessante que a população entenda: nós, do meio jurídico, temos uma comunidade de advogados, juristas, pessoas que se conhecem e travam contatos profissionais umas com as outras. O que o Código de Processo Civil determina é que existem algumas condições objetivas em que se está impedido de julgar por não se ter a imparcialidade. Aparentemente, o que nós temos nesse julgamento é que as condições impeditivas objetivas não estão presentes. Imagine o seguinte: Toffoli foi advogado-geral da União, assim como o ministro Mendes no governo FHC e Celso de Mello na presidência Sarney. Então eles não vão poder julgar nenhuma causa da União? Não existe isso. Antes de se chegar ao STF ninguém é escoteiro: foi-se procurador-geral, juiz do Tribunal de Justiça, advogado. Senão, só um professor que não advogou poderia vir a ser ministro do Supremo.

Dessa forma parece que cabe exclusivamente ao magistrado declarar-se impedido.

Claro que se houver uma dúvida contundente de que ele não está sendo honesto com isso, o procurador-geral da República está lá para dizer: “Existe aqui uma série de elementos que comprometem a imparcialidade…” Caberia a ele pedir. Da mesma forma, se os advogados dos réus entendessem que Gilmar Mendes não poderia participar, teriam solicitado isso. A priori todos os ministros atuaram em mil casos e nada impede, inclusive, que votem contra aquilo que já sustentaram enquanto advogados ou consultores de clientes.

E a afirmação do ex-presidente Fernando Henrique de que embora o STF julgue pela lei ele deve também ouvir a opinião pública?

Eu não vou interpretar o que o ex-presidente Fernando Henrique acha. O que me parece fundamental é o seguinte: claro que o STF não é um órgão alienado da sociedade brasileira. Como, aliás, nenhum juiz de comarca. Imagine quando acontece o homicídio de uma criança em uma pequena cidade do interior. É evidente que há uma comoção e que o juiz tem sua opinião e intuições sobre aquilo. É da natureza da justiça humana. Da mesma forma que um jornalista carrega para o trabalho as suas concepções e simpatias. Agora, em ambos os casos o exercício da profissão é tentar fazer a distinção entre aquilo que acho, aquilo de que gosto, daquilo que são os fatos apresentados. Nestes últimos anos o Supremo tem demonstrado que dialoga com a sociedade. Todas as vezes em que o STF criou audiências públicas para discutir certos temas ele vocaliza isso: “Quero ouvir a sociedade sobre as cotas, ou os cientistas sobre as células-tronco”. Mas no fundo ele tem que justificar sua decisão do ponto de vista jurídico – e é isso o que distingue suas decisões das do Parlamento. A legitimidade do Supremo decorre de sua capacidade de justificar juridicamente as decisões.

No ensaio Supremocracia, o sr. afirma que o processo de expansão da autoridade dos tribunais no mundo adquiriu, no Brasil, contornos mais acentuados. Por quê?

A meu ver, no Brasil ocorreu uma situação razoavelmente distinta da de outros países. A Constituição de 88 é extremamente ambiciosa. Ela quer dizer como o Estado, a sociedade, a economia vão funcionar. Há constituições no mundo muito mais discretas, que se propõem a regular apenas a relação entre os poderes. A nossa fala de sistemas tributário e previdenciário, direito penal e financeiro… Ela não só quer regular tudo como quer mudar muitas coisas: afirma que a função do Estado é reduzir a desigualdade, por exemplo. É uma Constituição que busca dirigir a sociedade brasileira em todos os seus aspectos. É um diferencial mesmo em relação a outras Constituições do mundo com essa mesma oratória. Por exemplo, a indiana, extremamente ambiciosa também, trata desses aspectos apenas como princípios que regem o Estado. Mesmo a alemã, que as pessoas dizem ser uma Constituição social, tampouco especifica as medidas para se atingir determinado fim. A brasileira, não. Ela diz: “25% da arrecadação tributária de Estados e Municípios devem ser aplicados na educação”. É uma Constituição que dá ordens a todos os setores da sociedade e atribui ao STF a função de guardá-la. O STF é um órgão ubíquo porque tem que guardar uma Constituição ubíqua.

Foi ela que conferiu tantos poderes ao STF?

É a razão pela qual o Supremo sai de um órgão razoavelmente discreto na organização da República para a proeminência que vemos hoje. Outra questão, também de matriz institucional, é a junção de atribuições de que falei. No pós-guerra, diversos países – como a Alemanha em 1949, a Itália em 1947, Portugal, Espanha, África do Sul e Hungria – optaram por manter sua suprema corte com funções de órgão de revisão e criar uma nova, com funções de órgão constitucional. No Brasil, nós juntamos tudo. Ou seja, além de a Constituição ser muito grande, deu-se a um mesmo órgão muitas atribuições: guardar a Constituição, rever os atos do Judiciário e, como estamos vendo agora, julgar casos em primeira instância relativos a altas autoridades do País. É isso que a meu ver leva a uma “supremocracia”. Com outra característica ainda mais peculiar: o poder de controlar a constitucionalidade de emendas à Constituição. Se o Congresso faz uma lei, o Supremo não gosta e os parlamentares em resposta aprovam uma emenda constitucional, o STF pode derrubá-la também, argumentando que a emenda fere “as cláusulas pétreas da Constituição”. Esse mecanismo poucos países têm, e os que tem não o exercem. É por isso que, tecnicamente, o STF é mais poderoso do que a Suprema Corte americana.

Essa proeminência dada ao STF aponta para uma fragilidade do sistema representativo brasileiro, segundo o sr. Por quê?

Vários analistas têm dito que temos no Brasil hoje uma democracia em que se delegaram funções do Congresso. Por razões de estrutura institucional, mais especialmente a presença das medidas provisórias, a iniciativa legislativa do presidente da República e a capacidade que ele tem de determinar a agenda do Congresso, teria havido uma delegação de competências para o Executivo. O Legislativo brasileiro foi muito amesquinhado. E o Executivo, dado a pluralidade de partidos, tem sempre que formar uma base de sustentação ampla – fato que estaria inclusive, como se discute, na raiz do mensalão. Há uma pesquisa muito importante do (cientista político) Fernando Limongi que comprova essa realidade: o grau de sucesso nas proposições de um presidente no Brasil é muito alto. Enquanto um presidente americano tem às vezes enorme dificuldade em aprovar certos projetos no Congresso, aqui temos quase o índice de sucesso de um regime parlamentarista. O que eu digo no trabalho é que, diante dessa mutação do papel do Legislativo, as decisões de natureza política mais importantes tomadas pelo presidente com apoio de sua base no Congresso prescindem do debate público, da mobilização da população.

De que maneira?

A decisão simplesmente sai. E aí o STF vira o locus onde os derrotados vão questioná-la. Não é que o Supremo faça o debate público, mas ele é organizado a partir de uma decisão judicial. Note que nos engajamos na discussão sobre o aborto dos fetos anencéfalos ou sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo a partir do momento em que tais temas chegaram ao STF. Lá se manifestaram grupos e movimentos sociais, talvez porque já não se sintam representados no Congresso ou não encontrem ali a polarização adequada ao debate. Nesse sentido, o STF faz uma substituição quase que simbólica do Legislativo, como articulador do debate público. Embora as decisões concretas sejam tomadas no Congresso com hegemonia forte do Executivo, é o STF que faz o double check, revendo-as e colocando-as em discussão.

Embora tenha aspectos positivos, o sr. diz que a ‘supremocracia’ gera tensões no modelo institucional brasileiro. Como contorná-las?

Existem dois problemas que deveríamos atacar, um deles ao qual vamos assistir de maneira muito forte nos próximos dias. Tribunais de última instância com função constitucional são órgãos colegiados: discutem, maturam uma decisão e a maioria formada representa a vontade da corte. Em outros países, a decisão da corte é normalmente lavrada por um dos juízes que convenceu os outros de que sua opinião era mais correta ou que foi capaz de juntar todas as opiniões e construir um voto de consenso. O voto da corte. Se alguém discorda, escreve seu voto em apartado. Isso não acontece no Brasil. É evidente que os juízes do STF discutem, batem boca, etc., mas cada um faz seu voto. E um órgão com tanto poder assim deveria exercê-lo de forma mais colegiada, como: “Esta não é a opinião do ministro Marco Aurélio ou do ministro Toffoli, é a da corte. Estamos em consenso quanto a isso”. É um aspecto ainda mais preocupante quando se leva em conta que há uma quantidade enorme de decisões – cerca de 95% delas – tomadas por um único ministro. A concessão da liminar, o agravo, etc., são julgados individualmente, o que põe em risco a integridade das decisões da corte, que é o que minimiza a possibilidade de erro. Mas a mudança mais relevante seria o Supremo ter uma boa doutrina sobre o que chamamos de “deferência”. São aquelas questões em que ele não deve se imiscuir por serem estritamente políticas. Não se trata de omissão, mas de uma deferência à democracia, o reconhecimento de que certos temas só podem ser decididos por representantes eleitos pelo povo. O STF, que avançou em face de uma certa omissão simbólica do Legislativo, não pode substituir as opiniões dos poderes democráticos pela sua própria. É o que resta ao Supremo esclarecer, definindo uma doutrina a respeito de qual é o seu papel.

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IVAN MARSIGLIA, jornalista, é editor-assistente do caderno Aliás do jornal O Estado de S. Paulo.

Fonte: Site Os constitucionalistas - Entrevista publicada originalmente no Estado de S. Paulo, edição 5/8/2012.

Foto: Nelson Jr./SCO/STF.

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